sábado, 17 de dezembro de 2016

Natal...poemas e outros textos



Natal dos pobres, de Raul Brandão
(excerto)
"Natal…
Está um dia fosco de neblina incerta e tristeza. Para lá as árvores despidas não bolem. A vida parou. As nuvens andam a esta hora a rastro pelas encostas pedregosas dos montes. Não se ouve um grito. Tudo na natureza se concentra e sonha. Há entanto um grande
rio envolto que nunca cessa de correr…

Longe pelos caminhos, através de pinheirais cismáticos e calados, vão velhinhas tristes, de saia pelos ombros, para consoar nessa noite com os filhos. Andam trôpegas léguas e léguas. As suas mãos calosas, as caras enrugadas, onde as lágrimas abriram sulcos, os olhos tristes, contam o que elas têm passado na vida, dias sem pão, suor de aflições, desamparos, maus tratos…

Os cavadores deixaram os arados mortos nos campos, que a chuva alaga. Que tudo repouse. O vinho de hoje conforta, como as lágrimas choradas pelas nossas desgraças, o lume de hoje aquece como o amor de nossas mães. Nos soutos, sob a chuva que cai mansa e continua, andam pobres que não têm lenha, a arrancar uma raiz esquecida, para se aquecerem. Deus os tenha na sua mão de pai. Partem, chegam, vêm muito longe, para verem os seus meninos, matando saudades. Quase não comem e sustentam filhos, sustentam netos. Os velhos, que tem atrás de si uma vida de martírio e fomes, dizem:

– É hoje o maior dia do ano…

El Greco - A adoração dos pastores
Na lareira arde um canhoto. Cai o nevão. A cozinha é negra, de telha vá, é negro o frio, mas as almas sentem-se agasalhadas. Por um buraco avistam-se as estrelas e uma pedra serve de lar. Ao estalido das pinhas, abafadas na cinza, repartem um pão que é o suor do seu rosto, bebem o vinho aquecido em árvores que as suas mãos cortaram…
Sentados ao lume não falam. As brasas vão-se extinguindo como um poente, ou como uma alma que vai deixar-nos. A Morte passa. No buraco do telhado a estrela reluz, o nevão cai com um ruído das flores desfolhadas, e cada um cisma em alguma coisa de indeterminado e vago, de longínquo; em certa hora da vida, na mãe, num filho ausente, naquela morta que passou seus dias a sacrificar-se por nós…

– O lume apaga-se…

– Deitai-lhe canhotos.

O lume apaga-se e as sombras da noite, em revoadas, vêm escutar-nos atentas.
Os pobres são como os rios. Estancam a sede da terra, fazem inchar as raízes e crescer as árvores; acarretam; moem o pão nos moinhos. Ei-la a vida da terra. Todas as catedrais se construíram da sua dor; sem eles a vida pararia.
Natal dos pobres! natal dos pobres!… Porque é que criaturas misérrimas encontram ainda na sua gélida nudez horas para recordar e amar? Pobres repartem o

seu pão; espezinhados dão-nos das suas lágrimas. Vinho quente! vinho quente e amargo, que sabe a aflição!

Chegam-se uns aos outros para se aquecerem. Nas enfermarias, nos sítios onde se sofre, os míseros e os doentes quedam-se muito tempo a cismar. Os pobres pensam que existem seres ainda mais pobres, lares desamparados, onde nem o lume se acende; cuidam numa velhinha, que, a essa mesma hora, cisma, abandonada, e sozinha, ao pé de brasas extintas no filho doente, no filho ausente… Há cabanas nuas, lares rotos, almas mais gélidas que o nevão.

As lágrimas que se choram e se não vêem são as melhores: caem sobre a alma.
Sofia sobe as escadas com uma caneca de vinho quente, para repartir com o Gebo. Na sua fisionomia há um cansaço enorme.

A chorar, misturando-lhe lágrimas, o velho, mais gordo e todo branco, bebe o azedo vinho quente das prostitutas. Depois abraçados soluçam na trapeira fria.
Fora não se ouve rumor: as coisas ingeridas escutam. Põem-se a cismar na mãe que descansa na terra encharcada. Tudo tão triste, dias sem pão, e o amor a prendê-los, a uni-los, mais forte que a desgraça. Não protestam, não têm forças para gritar. Baixinho o velho Gebo e a filha choram aquela que a terra primeiro tragou.

– Se o Senhor também nos levasse…

E Sofia bebendo do mesmo copo:

– Tenha paciência, tenha paciência…

– Se o Senhor nos levasse juntos, na mesma hora…

Cuido que não tinha tanto frio.

– Aí tem pão.

– Sabes? Eu tenho medo de morrer. Se morresse contigo, minha filha, não tinha tanto medo.
– A mãe lá nos espera. Na cova acabam-se as precisões e as lágrimas…
– Tudo se acaba na cova. Chegada a nossa hora, acaba-se também a desgraça.
– Aqui tem o vinho.

Natal dos pobres, noite de comunhão, noite de lágrimas e saudades! Não é chuva que cai sem ruído, são lágrimas. O Gebo abre a janela e põe-se a falar para a escuridão com palavras que a noite escuta, com palavras que a noite leva.

Em torno da mesa de pinho ceiam as mulheres. Com os cotovelos fincados nas tábuas, olham o vinho quente e cismam… Ceia de natal! Ceia de natal!"