quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Inverno

   As Bibliotecas Escolares assinalam a chegada do inverno 
com um poema de Eugénio de Andrade

   Nos dias frios e cinzentos, nada melhor do que uma boa leitura!
   Aproveita as sugestões da tua biblioteca!

Claude Monet, Neve em Argenteuil, 1875.

O Inverno

Velho, velho, velho
Chegou o Inverno.

Vem de sobretudo,
Vem de cachecol,

O chão onde passa 
Parece um lençol.

Esqueceu as luvas
perto do fogão:

Quando as procurou,         
Roubara-as um cão.

Com medo do frio, 
Encosta-se a nós:

Dai-lhe café quente
Senão perde a voz.

Velho, velho, velho
Chegou o Inverno.

Eugénio de Andrade (1923-2005)  

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Poemas de Natal... e Outros Textos

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
(Lisboa, 1890-1916)

  A Noite de Natal 


Em a noite de Natal
Alegram-se os pequenitos;
Pois sabem que o bom Jesus
Costuma dar-lhes bonitos.

Vão se deitar os lindinhos
Mas nem dormem de contentes
E somente às dez horas 
Adormecem inocentes

Perguntam logo à criada
Quando acorde de manhã
Se Jesus lhes não deu nada.

- Deu-lhes sim, muitos bonitos.
- Queremo-nos já levantar
Respondem os pequenitos.


Patinagem no Lago de Thomas Kinkade

sábado, 17 de dezembro de 2016

Natal...poemas e outros textos



Natal dos pobres, de Raul Brandão
(excerto)
"Natal…
Está um dia fosco de neblina incerta e tristeza. Para lá as árvores despidas não bolem. A vida parou. As nuvens andam a esta hora a rastro pelas encostas pedregosas dos montes. Não se ouve um grito. Tudo na natureza se concentra e sonha. Há entanto um grande
rio envolto que nunca cessa de correr…

Longe pelos caminhos, através de pinheirais cismáticos e calados, vão velhinhas tristes, de saia pelos ombros, para consoar nessa noite com os filhos. Andam trôpegas léguas e léguas. As suas mãos calosas, as caras enrugadas, onde as lágrimas abriram sulcos, os olhos tristes, contam o que elas têm passado na vida, dias sem pão, suor de aflições, desamparos, maus tratos…

Os cavadores deixaram os arados mortos nos campos, que a chuva alaga. Que tudo repouse. O vinho de hoje conforta, como as lágrimas choradas pelas nossas desgraças, o lume de hoje aquece como o amor de nossas mães. Nos soutos, sob a chuva que cai mansa e continua, andam pobres que não têm lenha, a arrancar uma raiz esquecida, para se aquecerem. Deus os tenha na sua mão de pai. Partem, chegam, vêm muito longe, para verem os seus meninos, matando saudades. Quase não comem e sustentam filhos, sustentam netos. Os velhos, que tem atrás de si uma vida de martírio e fomes, dizem:

– É hoje o maior dia do ano…

El Greco - A adoração dos pastores
Na lareira arde um canhoto. Cai o nevão. A cozinha é negra, de telha vá, é negro o frio, mas as almas sentem-se agasalhadas. Por um buraco avistam-se as estrelas e uma pedra serve de lar. Ao estalido das pinhas, abafadas na cinza, repartem um pão que é o suor do seu rosto, bebem o vinho aquecido em árvores que as suas mãos cortaram…
Sentados ao lume não falam. As brasas vão-se extinguindo como um poente, ou como uma alma que vai deixar-nos. A Morte passa. No buraco do telhado a estrela reluz, o nevão cai com um ruído das flores desfolhadas, e cada um cisma em alguma coisa de indeterminado e vago, de longínquo; em certa hora da vida, na mãe, num filho ausente, naquela morta que passou seus dias a sacrificar-se por nós…

– O lume apaga-se…

– Deitai-lhe canhotos.

O lume apaga-se e as sombras da noite, em revoadas, vêm escutar-nos atentas.
Os pobres são como os rios. Estancam a sede da terra, fazem inchar as raízes e crescer as árvores; acarretam; moem o pão nos moinhos. Ei-la a vida da terra. Todas as catedrais se construíram da sua dor; sem eles a vida pararia.
Natal dos pobres! natal dos pobres!… Porque é que criaturas misérrimas encontram ainda na sua gélida nudez horas para recordar e amar? Pobres repartem o

seu pão; espezinhados dão-nos das suas lágrimas. Vinho quente! vinho quente e amargo, que sabe a aflição!

Chegam-se uns aos outros para se aquecerem. Nas enfermarias, nos sítios onde se sofre, os míseros e os doentes quedam-se muito tempo a cismar. Os pobres pensam que existem seres ainda mais pobres, lares desamparados, onde nem o lume se acende; cuidam numa velhinha, que, a essa mesma hora, cisma, abandonada, e sozinha, ao pé de brasas extintas no filho doente, no filho ausente… Há cabanas nuas, lares rotos, almas mais gélidas que o nevão.

As lágrimas que se choram e se não vêem são as melhores: caem sobre a alma.
Sofia sobe as escadas com uma caneca de vinho quente, para repartir com o Gebo. Na sua fisionomia há um cansaço enorme.

A chorar, misturando-lhe lágrimas, o velho, mais gordo e todo branco, bebe o azedo vinho quente das prostitutas. Depois abraçados soluçam na trapeira fria.
Fora não se ouve rumor: as coisas ingeridas escutam. Põem-se a cismar na mãe que descansa na terra encharcada. Tudo tão triste, dias sem pão, e o amor a prendê-los, a uni-los, mais forte que a desgraça. Não protestam, não têm forças para gritar. Baixinho o velho Gebo e a filha choram aquela que a terra primeiro tragou.

– Se o Senhor também nos levasse…

E Sofia bebendo do mesmo copo:

– Tenha paciência, tenha paciência…

– Se o Senhor nos levasse juntos, na mesma hora…

Cuido que não tinha tanto frio.

– Aí tem pão.

– Sabes? Eu tenho medo de morrer. Se morresse contigo, minha filha, não tinha tanto medo.
– A mãe lá nos espera. Na cova acabam-se as precisões e as lágrimas…
– Tudo se acaba na cova. Chegada a nossa hora, acaba-se também a desgraça.
– Aqui tem o vinho.

Natal dos pobres, noite de comunhão, noite de lágrimas e saudades! Não é chuva que cai sem ruído, são lágrimas. O Gebo abre a janela e põe-se a falar para a escuridão com palavras que a noite escuta, com palavras que a noite leva.

Em torno da mesa de pinho ceiam as mulheres. Com os cotovelos fincados nas tábuas, olham o vinho quente e cismam… Ceia de natal! Ceia de natal!"

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Natal...poemas e outros textos



Uma estrela, de Manuel Alegre
“Todos os anos, pelo Natal, eu ia a Belém. A viagem começava em dezembro, no princípio das férias. Primeiro pela colheita do musgo, nos recantos mais húmidos do jardim. Cortava-se como um bolo, era bom sentir as grandes fatias despregarem-se da areia, dos muros ou dos troncos das árvores velhas, principalmente da ameixieira. Enchia-se a canastra devagar, enquanto a avó ia montando o que hoje se chamaria as estruturas, ou mesmo as infraestruturas, junto da parede da sala de jantar que dava para o jardim. Eram caixotes, caixas de chapéus e de sapatos viradas do avesso, tábuas, que pouco a pouco ela ia cobrindo de musgo, ao mesmo tempo que fazia carreiros e caminhos com areia e areão. Mais tarde, os rios e os lagos, com bocados de espelhos antigos, de vidros ou mesmo de travessas cheias de água. Até que todos os caixotes, caixas e tábuas desapareciam. Ficavam montanhas, planícies, rios, lagos. Era uma nova criação do mundo. Aqui e ali uma casinha ou um pastor com suas cabras. E todos os caminhos iam para Belém.


Não era como o presépio da Igreja que estava sempre todo pronto, mesmo antes de o Menino nascer. A cabana, a vaca, o burro, os três reis do Oriente. Maria, José, Jesus deitado nas palhinhas. Via- se logo que era a fingir. Não o da avó, que era mais do que um presépio, era uma peregrinação, uma jornada mágica ou, se quiserem, um milagre. Nós estávamos ali e não estávamos ali. De repente era a Judeia, passeávamos nas margens do Tiberíades, andávamos pelo Velho Testamento, João Baptista batizava nas águas do Jordão e aquele monte, ao longe, podia ser Sinai ou talvez o último lugar onde Moisés, sem lá entrar, viu finalmente a terra onde corria o leite e o mel. Mas agora era o Novo Testamento. A avó ia buscar as figuras ao sótão, eram bonecos de barro comprados nas feiras, alguns mais antigos, de porcelana inglesa, como aquele caçador que a avó colocava à frente dizendo: Este é o pai. Seguia-se a mãe, de vestido comprido, dir-se-ia que ia para o baile, mas não, saía de cima de uma mesinha da sala de visitas e agora estava ao lado do pai, olhando levemente para trás onde, entretanto, a avó já tinha colocado figuras mais toscas, eu, a minha irmã, os primos, alguns amigos, todos a caminho de Belém.

— E a avó? — perguntava eu.

— Eu já estou velha para essas andanças.

De dia para dia mudávamos de lugar. E todas as manhãs deparávamos com novas casas, mais rebanhos, pastores, gente que descia das serras, atravessava os rios e os lagos. Os caminhos ficavam cada vez mais cheios. E todos iam para Belém. À noite tremulavam luzes. Acendiam e apagavam. Mas ainda não se via a cabana, nem Maria, nem José.
Então uma noite, entre as estrelas do céu, aparecia uma que brilhava mais que todas.

— Esta é a estrela — dizia a avó.

Era uma estrela que nos guiava. Na manhã seguinte lá estavam eles, os três reis do Oriente, Magos, explicava o pai, que também não dizia Pai Natal, dizia S. Nicolau, talvez por influência de uma misse de origem russa que em pequeno lhe falava de renas e trenós e de S. Nicolau atravessando as estepes.

Cheirava a musgo na sala de jantar. Cheirava a musgo e a lenha molhada que secava em frente do fogão. E os Magos lá vinham, a pé, de burro, de camelo. Traziam o oiro, o incenso, a mirra. Às vezes nós, os mais pequenos, juntávamo-nos e cantávamos: “Os três reis do Oriente/Já chegaram a Belém.”

— Não chegaram nada — atalhava a avó — ainda não.

Estávamos cada vez mais perto. E também nervosos. Confesso que às vezes fazia batota. Empurrava-os um pouco mais para a frente, para mais perto de Belém e do lugar onde eu sabia que mais tarde ou mais cedo a avó ia pôr a cabana. Mas ela descobria.

— Não lucras nada com isso, podes apressar toda a gente, não podes apressar o tempo.

Cada vez havia mais luzes na Judeia. Por vezes surgiam novos lagos, eram mistérios da minha avó. E a estrela lá estava, a grande estrela de prata que brilhava mais do que todas as outras, às vezes eu ia à janela e via a projeção daquela estrela, ficava confuso, já não sabia se era a estrela da sala ou uma estrela do céu, era uma estrela nova, uma estrela de prata, era uma estrela que nos guiava. No céu, na sala, na Judeia, talvez dentro de nós.

Até que chegava o primeiro dos grandes momentos solenes. A avó chamava-nos ao sótão (nós dizíamos forro), abria uma velha arca e desempacotava a cabana. Depois, muito comovida, quase sempre com lágrimas nos olhos, as figuras de Maria e José.

— Não há nada tão antigo nesta casa, já eram dos avós dos meus avós.

Impressionava-me sobretudo o manto muito azul de Maria e o rosto magro, quase assustado, de José. A avó limpava-os com muito cuidado e mandava-nos sair. Nunca nos deixou ver o resto.

À noite, quando regressávamos da missa do galo, a que a avó não ia, chegávamos a casa e finalmente estávamos em Belém.

A estrela brilhava intensamente sobre a cabana, Maria e José debruçavam-se sobre o berço, onde Jesus, todo rosado, deitado nas palhinhas, agitava os braços e as pernas, envolvido pelo bafo quente dos animais, enquanto os três reis do Oriente, agora sim, chegavam a Belém para depositar aos pés do Menino o oiro, o incenso, a mirra. E vinham os pastores, e vinha o pai, de caçador, a mãe, de vestido de baile, e vínhamos nós, eu, a minha irmã, os primos, não eramos de porcelana nem de barro, estávamos ali em carne e osso, era noite de Natal, uma estrela nos guiava, brilhava sobre a Judeia e sobre o presépio, brilhava cá fora entre as estrelas, brilhava dentro de nós. Naquela noite, naquele momento, nós não estávamos na sala de jantar em frente do presépio, tínhamos chegado finalmente a Belém para adorar o Menino ao lado de Maria e José e dos três reis do Oriente, Magos, não consegui deixar de corrigir o meu pai. Mas mágica, verdadeira mágica, era a avó. Era ela que fazia o milagre da transfiguração, trazia o Natal para dentro de casa, levava-nos a todos até Belém. O cheiro a musgo e a lenha. Os montes, os vales, os rios, os lagos. Caminhos e caminhos que iam para Belém. E a estrela de prata, a estrela que nos guiava. Era uma estrela no céu, dentro de casa, dentro de nós. Pela mão da avó ela brilhava. Pela sua magia, Belém estava dentro de casa. E a casa também ia até Belém.

Mais tarde, muito mais tarde, eu estava no exílio. Na noite de Natal, os revolucionários ficavam tristes e nostálgicos. Talvez recordassem outras avós, outros presépios, outros lugares. Reuniam- se em casa deste ou daquele, improvisava-se uma árvore de Natal, trocavam-se presentes. Mas ninguém, nem mesmo os mais duros, os que faziam gala em dizer que o Natal para eles não significava nada, nem mesmo esses conseguiam disfarçar uma sombra no olhar. Saudade, dir-se-á. Mas talvez fosse mais do que saudade e solidão e o pior de todos os exílios é o de se sentir estrangeiro no mundo. Talvez fosse a consciência de que, para lá de todas as crenças ou não crenças, havia um irremediável sentimento de perda. Muitas vezes me perguntei o que seria. Mas não conseguia responder. Sentia o mesmo aperto, o mesmo buraco por dentro, o mesmo sentimento de algo para sempre perdido.

Uma noite de Natal, em Paris, eu estava sozinho. Comprei uma garrafa de vinho do Porto, mas não fui capaz de bebê-la assim, completamente só, num quarto de criada num sexto andar duma velha rua do Quartier Latin. Peguei na garrafa e fui até aos Halles. Procurei o bistrô onde costumava comer uma omelete de fiambre. Felizmente estava aberto. Pedi a omelete e abri a garrafa. Havia mais três solitários no bistrô, um velho de grandes barbas, um tipo com cara de eslavo, um africano. Convidei-os para partilharem comigo a garrafa de Porto, que não resistiu muito tempo. Encomendámos outras bebidas.

— Conta uma história de Natal do teu país — pediu o velho.

— Só se for a do presépio da minha avó.
— Então conta.

Eu contei. Era já muito tarde e o patrão disse-nos que queria fechar. Chegados à rua, o africano apontou para o céu e disse-me:

— Olha.

E eu vi. Uma estrela que brilhava mais que as outras estrelas. Era uma estrela de prata. A estrela da avó. Brilhava no céu, brilhava outra vez dentro de mim, quase posso jurar que brilhava dentro dos outros três.

Então eu perguntei ao africano como se chamava. Ele respondeu:

— Baltazar.

Perguntei ao velho e ele disse:

— Melchior.

E sem que sequer eu lhe perguntasse, o eslavo disse:

— O meu nome é Gaspar.

Era noite de Natal e talvez ainda por magia da avó eu estava na rua, em Les Halles, com os três reis do Oriente, Magos, diria o meu pai.

— E agora? — perguntei a Baltazar.

— Agora — respondeu o africano apontando a estrela — agora vamos para Belém.”

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Natal...Poemas e Outros Textos

DAVID MOURÃO-FERREIRA
(Lisboa, 1927-1996)

Natal à Beira Rio

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto do rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, à noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?


     John Henry Twatchman, The Christmas Tree, 1901.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Natal...poemas e outros textos


Carta do Pai Natal 
de Mark Twain
(Excerto)





       "Recebi e li as cartas que tu é a tua irmã mais nova me escreveram através da mão da vossa mãe e das vossas amas; li também aquelas que vocês, pessoas pequeninas, me escreveram com as vossas próprias mãos - pois embora não tenham usado quaisquer caracteres que façam parte do alfabeto de pessoas crescidas, usaram os caracteres que todas as crianças em todas as terras do planeta e nas estrelas cintilantes usam; e como todos os meus súbditos na Lua são crianças e só usam esses caracteres, facilmente compreenderás que consigo ler sem problema algum os fantásticos e denteados símbolos usados por ti e pela tua irmãzinha. Mas tive dificuldade com as cartas que ditaste através da tua mãe e das tuas amas, pois sou estrangeiro e não consigo ler bem as coisas em inglês. Verás que não me enganei nas coisas que tu é a bebé pediram nas vossas cartas - desci pela vossa chaminé à meia noite enquanto vocês dormiam e eu mesmo entreguei as prendas todas - e também vos beijei às duas, porque vocês são boas crianças, bem educadas, bem comportadas, e são praticamente as pessoas pequeninas mais obedientes que eu alguma vez vi. Mas na carta que ditaste houve algumas palavras que não consegui decifrar com certeza, e um ou dois pedidos pequenos que não consegui obter por estarem esgotados. O nosso último lote de móveis de cozinha para bonecas acabou de ir para uma pequena criança muito pobre bem lá em cima na Estrela Polar (...)".

Em Carta do Pai Natal (e outras histórias), Livros Amarelos, Edições Guerra & Paz, novembro de 2016


Filmes de Natal





"Um milagre de Natal"
Título Original: A Christmas Miracle
Clássico Walt Disney - 1978

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Natal...Poemas e Outros Textos

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
(Porto, 1919 - 2004)

A ESTRELA

Eu caminhei na noite
E entre o silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava.

Grandes perigos na noite me apareceram:
Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
Duma cidade a néon enfeitada.

A minha solidão me pareceu coroa.
Sinal de perfeição em minha fronte.
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era dum ferro
Tão pesado, que toda me dobrava.

Do frio das montanhas eu pensei:
"Minha pureza me cerca e me rodeia".
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu.

E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram:
Pedi às pedras do monte que falassem 
mas elas como pedras se calaram.
Sozinha me vi, delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava.

E eu caminhei na noite; minha sombra
De gestos desmedidos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins dos desertos caminhavam:
Então vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava
E assim me disseram: "Vem connosco
Se também vens seguindo a estrela".
Então soube que a estrela me seguia.

Era real não imaginada.
Grandes e humanas miragens nos mostraram
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava.
E eu espantada vi que aquela estrela
Para a cidade dos homens nos guiava.

E a estrela do céu parou em cima
duma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha o mesmo tom que a cinza
Longe do verde-azul da Natureza.

Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água.
Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais negra e mais sem luz
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado.

Nesse lugar pensei: Quanto deserto
Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens tão perto.




Van Gogh, A Noite Estrelada, 1889.